Introdução à Relação entre Anestesia e Hipertermia Maligna
A hipertermia maligna (HM) consiste em uma reação hipermetabólica grave, desencadeada principalmente por anestésicos inalatórios (como halotano, isoflurano, sevoflurano) e pelo relaxante muscular despolarizante succinilcolina. Essa afecção, de origem genética, está relacionada a mutações em receptores presentes no retículo sarcoplasmático das células musculares, levando à liberação maciça de cálcio intracelular e a um aumento exponencial na taxa metabólica. Como resultado, o paciente sofre elevação rápida da temperatura corpórea, contraturas musculares, arritmias e possível insuficiência de múltiplos órgãos se não tratado de imediato.Em meio à rotina do centro cirúrgico, a ocorrência de hipertermia maligna demanda respostas ágeis, pois a mortalidade pode ser alta caso o diagnóstico e a intervenção sejam retardados. A interação entre Anestesia e Hipertermia Maligna obriga o anestesiologista a reconhecer os primeiros sinais — como taquicardia inexplicável, elevação abrupta de dióxido de carbono exalado (ETCO₂) e rigidez muscular — e instituir medidas que incluem a suspensão do agente desencadeante, resfriamento ativo e administração de dantrolene. Neste texto, exploraremos desde a fisiopatologia da HM até as abordagens de prevenção e tratamento, destacando os cuidados no período pré, intra e pós-operatório para garantir a segurança do paciente suscetível.Fisiopatologia da Hipertermia Maligna e Risco Cirúrgico
Na hipertermia maligna, uma mutação (comumente no gene RYR1, que codifica o receptor de rianodina) torna o canal de cálcio no retículo sarcoplasmático hipersensível a certos fármacos anestésicos. Quando exposto a um agente desencadeante (por exemplo, succinilcolina ou um anestésico volátil específico), o canal permanece aberto, liberando grande quantidade de Ca²⁺ no interior da fibra muscular. Esse excesso de cálcio ativa processos de contração muscular sustentada e consumo maciço de ATP, resultando em produção exagerada de calor, lactato e CO₂.Clinicamente, observa-se elevação da temperatura corpórea em ritmo acelerado, rigidez muscular, taquicardia, taquipneia (se em ventilação espontânea) ou aumento do ETCO₂ em ventilação mecânica, além de instabilidade hemodinâmica e possível hiperpotassemia. Sem intervenção imediata, a acidose metabólica e o colapso cardiovascular podem levar ao óbito. Assim, Anestesia e Hipertermia Maligna exigem do profissional um senso de prontidão para identificar e tratar as alterações metabólicas antes que atinjam proporções irreversíveis.A suscetibilidade à HM é frequentemente herdada de forma autossômica dominante. Muitos pacientes desconhecem ser portadores do gene mutado até sofrerem um episódio em anestesias anteriores ou até que um parente apresente quadro semelhante. Por isso, a triagem e o histórico familiar de eventos anestésicos adversos, como febre inexplicável ou morte intraoperatória, tornam-se valiosas pistas para o anestesiologista, que pode então adotar estratégias preventivas.Avaliação Pré-Anestésica e Estratégias de Prevenção
Na avaliação pré-operatória de rotina, questionar o paciente (ou familiares) sobre complicações anestésicas prévias, história de febre pós-anestesia, contraturas musculares anormais ou óbitos súbitos na família após cirurgias é fundamental para suspeitar de hipertermia maligna. Embora muitos desconheçam ser suscetíveis, esse rastreio ajuda a elencar potenciais cuidados adicionais no perioperatório. Em casos de confirmação ou forte suspeita, o anestesiologista planeja uma condução isenta de agentes disparadores, preferindo anestésicos não desencadeantes, como propofol, opioides, benzodiazepínicos, cetamina e bloqueadores neuromusculares não despolarizantes de certas classes.O preparo da sala cirúrgica também é crucial: recomenda-se “limpar” o aparelho de anestesia, passando altos fluxos de oxigênio por pelo menos 20 minutos para eliminar resíduos de anestésicos voláteis em seus circuitos e absorvedores. Muitos locais chegam a trocar o circuito respiratório e o sistema de vaporizadores, usando equipamento exclusivo sem capacidade de administrar fármacos desencadeantes. Em casos de alto risco, ter dantrolene disponível em sala (geralmente 36 frascos ou mais) e um protocolo afixado para rápida intervenção é essencial. O anestesiologista deve alertar a equipe multiprofissional sobre a possibilidade de HM, garantindo que todos saibam reconhecer e reagir prontamente.Interações Farmacológicas e Escolha de Fármacos Seguros
Os principais agentes desencadeantes conhecidos da hipertermia maligna incluem os anestésicos inalatórios voláteis (halotano, isoflurano, sevoflurano, desflurano) e a succinilcolina. Portanto, em indivíduos suscetíveis ou com histórico confirmado de HM, opta-se por anestesia totalmente intravenosa (TIVA) usando propofol, opioides (fentanil, sufentanil, remifentanil) e benzodiazepínicos. Os relaxantes musculares não despolarizantes (como rocurônio, vecurônio, cisatracúrio) são seguros na maior parte dos casos, devendo, porém, ser monitorados cuidadosamente.Deve-se salientar que alguns fármacos como a cetamina, os agentes vasopressores e antibióticos, em geral, não são considerados gatilhos para a HM, embora possam impactar a estabilidade hemodinâmica. Por outro lado, a succinilcolina deve ser evitada completamente, pois é um dos gatilhos mais potentes. Caso haja real necessidade de intubação de sequência rápida, opta-se por rocurônio em dose alta (1,0-1,2 mg/kg) associado a sugammadex disponível, caso surjam dificuldades de intubação.No escopo de Anestesia e Hipertermia Maligna, a preocupação recai em manter a normotermia, evitando aquecedores corporais excessivos e controlando a temperatura ambiental. A manipulação de fluidos segue a rotina usual, mas, quando se suspeita de HM iminente ou se a indução for com grande risco, soluções geladas podem ser utilizadas para resfriamento profilático ou inicial. Esse manuseio farmacológico e de suporte, focado em evitar fármacos desencadeantes, configura a base para o cuidado seguro de pacientes em risco.Reconhecendo os Sinais de Hipertermia Maligna no Intraoperatório
A hipertermia maligna frequentemente inicia com sinais sutis, mas que se agravam em questão de minutos. O mais característico é o aumento repentino do ETCO₂ (capnografia), sem explicação plausível, acompanhado de taquicardia e taquipneia (se a ventilação for espontânea). A rigidez muscular, especialmente após a administração de succinilcolina, é outro indício expressivo. Com o agravamento, a temperatura corporal pode subir mais de 1 °C a cada 5 minutos, alcançando rapidamente valores superiores a 41 °C se não houver intervenção.Em termos hemodinâmicos, podem ocorrer arritmias ventriculares, instabilidade pressórica e redução da saturação de oxigênio. O lactato sanguíneo dispara, resultando em acidose metabólica e respiratória. Além disso, a rabdomiólise (destruição muscular) leva à hiperpotassemia e liberação de mioglobina, com risco de insuficiência renal aguda. Dessa maneira, no momento em que surgem suspeitas de HM — elevação anormal de CO₂, taquicardia, rigidez muscular e hipertermia — o anestesiologista deve suspender imediatamente os agentes desencadeantes, intensificar a ventilação com oxigênio a 100% e acionar o protocolo de tratamento com dantrolene.Essa prontidão é fundamental, pois cada minuto conta para evitar danos irreversíveis e diminuição do índice de mortalidade. O anestesiologista deve, portanto, estar familiarizado com os passos do tratamento, que inclui não apenas o uso de dantrolene, mas também a correção de acidose, hiperpotassemia, arritmias e resfriamento agressivo do paciente.Tratamento da Crise e Papel do Dantrolene
Dantrolene sódico é o antídoto específico para a crise de hipertermia maligna. Age bloqueando os canais de rianodina no retículo sarcoplasmático, impedindo a liberação excessiva de cálcio e cessando a cascata hipermetabólica. A dose inicial recomendada é de 2,0 a 2,5 mg/kg endovenosa, podendo repetir conforme a resposta, até um máximo de cerca de 10 mg/kg. A melhora costuma ser notável em poucos minutos, com queda do CO₂ e da temperatura corporal, bem como redução da rigidez muscular.Simultaneamente, intensifica-se a ventilação para eliminar o CO₂ excedente e corrigir a acidose. O resfriamento externo — usando compressas geladas em áreas estratégicas (axilas, virilhas, face anterior do tronco) e soluções frias endovenosas — acelera a normalização da temperatura. A acidose metabólica é corrigida com bicarbonato se necessário, e a hiperpotassemia controlada com infusões de glicose e insulina, bem como uso de diuréticos se houver rabdomiólise significativa. Caso ocorram arritmias, a terapia antiarrítmica deve se basear no tipo de arritmia, sendo cauteloso com bloqueadores de canal de cálcio em associação ao dantrolene (há relatos de colapso cardiovascular).Terminada a crise, a monitorização segue por 24 a 48 horas, pois surtos secundários de HM podem surgir. Geralmente, mantém-se uma dose de dantrolene (1 mg/kg a cada 4-6 horas ou em infusão contínua) para evitar recaídas. Esse manejo integral demonstra como a anestesia para suspeitos ou confirmados em hipertermia maligna não se limita à suspensão dos agentes desencadeantes; há todo um suporte intensivo durante e após o evento agudo.Estratégias de Manutenção Anestésica Livre de Risco
Para pacientes com histórico de hipertermia maligna ou suspeita genética positiva, o centro cirúrgico realiza um “flush” do aparelho de anestesia, mantendo alto fluxo de oxigênio (≥10 L/min) por pelo menos 20 minutos, removendo o vaporizador ou posicionando-o em “off” se não for removível. Também se substitui o circuito respiratório e o absorvedor de CO₂. A anestesia será conduzida sem agentes voláteis e sem succinilcolina, optando-se por TIVA. Em geral, usam-se propofol, remifentanil, dexmedetomidina e bloqueadores neuromusculares não despolarizantes, como rocurônio ou cisatracúrio, dependendo da duração da cirurgia.A manutenção é ajustada conforme a resposta clínica e a monitorização do grau de bloqueio neuromuscular, evitando sobre ou subdosagem de relaxantes. O anestesiologista deve manter a temperatura do paciente dentro de limites normais, empregando técnicas de aquecimento somente se houver real necessidade, mas evitando hipertermia iatrogênica. A analgesia multimodal, com anti-inflamatórios (quando não contraindicados) e opioides adequados, reduz a demanda de anestésicos e, consequentemente, diminui flutuações hemodinâmicas.Essa “linha” anestésica livre de exposição aos agentes desencadeantes costuma ser bastante segura para o paciente suscetível a HM, com a vantagem de evitar crises e simplificar o pós-operatório. De qualquer modo, manter dantrolene acessível e a equipe alerta faz parte do protocolo de prevenção, pois até estímulos externos raros podem desencadear crises em indivíduos altamente suscetíveis.Exemplos de Casos e Situações Práticas
Recordo um paciente de 25 anos, diagnosticado com propensão à hipertermia maligna após sofrer uma crise leve em uma cirurgia na adolescência. Agora, ele precisaria de uma artroscopia no joelho. No dia da operação, a equipe checou cuidadosamente se o circuito anestésico estava livre de vapores, realizando flush com O₂ a 10 L/min por 30 minutos. A indução se deu com propofol e fentanil, mantendo TIVA com remifentanil e cisatracúrio. O procedimento durou cerca de 2 horas, sem anormalidades; ao final, despertou normalmente e recebeu alta no mesmo dia, sem manifestações de HM.Outro episódio envolveu uma mulher de 40 anos, sem suspeita prévia, que desenvolveu hipertermia maligna após succinilcolina para intubação em cirurgia emergencial de apendicite. O anestesiologista notou rápido aumento do ETCO₂ e rigidez muscular, com taquicardia e hipertermia. Interrompido o agente volátil, injetou-se dantrolene (2,5 mg/kg), e iniciou-se resfriamento e suporte ventilatório intensivo. A paciente respondeu bem, mas precisou ficar sob cuidados na UTI por 48 horas, para correção de acidose e observar eventuais complicações renais da rabdomiólise inicial. Este caso ilustra a relevância do diagnóstico precoce e do protocolo estabelecido.Pós-Operatório e Acompanhamento
Encerrado o procedimento anestésico em um paciente suscetível ou que tenha apresentado hipertermia maligna, o período pós-operatório requer monitorização constante. Se houve crise, a permanência em UTI assegura a continuidade do resfriamento quando necessário, a vigilância das enzimas musculares (CK) e a prevenção de insuficiência renal por rabdomiólise. O uso de manitol e diuréticos pode auxiliar a diurese, enquanto a hidratação vigorosa dilui a mioglobina circulante. A acidose, se persistir, é controlada com bicarbonato, e a hiperpotassemia, com insulina e glicose.Por outro lado, se a anestesia transcorreu sem incidentes, mas o paciente possui histórico positivo, é fundamental informar à equipe que crises tardias podem raramente acontecer. Mantém-se a checagem de temperatura e parâmetros vitais nas primeiras 24 horas. A analgesia deve ser bem gerenciada, pois a dor eleva catecolaminas e pode mascarar sinais incipientes de outra crise.No aspecto educacional, o doente e seus familiares precisam ser orientados sobre a importância de relatar esse histórico em futuras consultas anestésicas e cirúrgicas, evitando a exposição a agentes desencadeantes. Cartões de alerta de hipertermia maligna e contato com associações de suporte a pacientes com HM reforçam a prevenção de incidentes. Em última análise, a consolidação de Anestesia e Hipertermia Maligna bem-sucedida depende tanto de cuidados imediatos quanto do seguimento pós-operatório, garantindo estabilidade clínica e reduzindo sequelas.Considerações Finais e Perspectivas Futuras
A condução de Anestesia e Hipertermia Maligna ilustra a relevância de protocolos bem estabelecidos, equipes treinadas e monitorização rigorosa. A rapidez do diagnóstico, somada à administração de dantrolene e suporte intensivo, reduziu substancialmente a mortalidade dessa condição outrora temível. Tecnologias como a capnografia em tempo real e a vigilância de temperatura central capacitam o anestesiologista a detectar variações mínimas de metabólitos, respondendo prontamente a alterações suspeitas.O futuro aponta para avanços genéticos que permitam identificar com maior precisão indivíduos suscetíveis, por meio de testes moleculares e rastreamento familiar. Tais progressos possibilitariam a implementação de anestesias livres de disparadores, até mesmo antes de qualquer episódio clínico. Além disso, pesquisas em novos compostos e formulações de dantrolene, ou em estratégias complementares de bloqueio de canais de cálcio, podem ampliar a eficácia terapêutica e simplificar o manuseio de crises.Para quem deseja aprofundar-se no assunto, disponibilizo artigos e discussões de casos em meu Blog, onde abordo protocolos anestésicos frente a patologias incomuns. Também atendo no consultório situado na Av. Dr. Arnaldo, 1887 – Sumaré – São Paulo – SP, com agendamento pelo Telefone/WhatsApp: (11) 95340-9590 ou contato@ivanvargas.com.br. Em última análise, o paradigma de segurança em Anestesia e Hipertermia Maligna alia ciência, prontidão e trabalho cooperativo, minimizando riscos e assegurando o bem-estar do paciente.Avaliação pré-anestésica
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