Introdução à Relação entre Anestesia e Câncer
O câncer representa um conjunto de doenças caracterizadas pelo crescimento desordenado de células, que podem formar tumores sólidos ou acometer órgãos de maneira sistêmica. Com o avanço da medicina, muitos pacientes oncológicos chegam ao centro cirúrgico em diferentes estágios da doença, seja para biópsias, ressecções tumorais, cirurgias paliativas ou procedimentos diagnósticos complexos. Nesse contexto, Anestesia e Câncer formam um binômio no qual o anestesiologista precisa avaliar não apenas a condição clínica geral do paciente, mas também os impactos de tratamentos pré-existentes, como quimioterapia, radioterapia e uso de medicamentos imunomoduladores.Em meu trabalho, observei que o paciente oncológico pode apresentar fragilidade nutricional, imunodepressão, alterações hematológicas e até lesões metastáticas que afetam diferentes funções orgânicas. Tais particularidades demandam uma condução anestésica atenta, objetivando minimizar o estresse cirúrgico e manter a estabilidade hemodinâmica. Por outro lado, a escolha de técnicas e fármacos anestésicos requer cautela, pois algumas drogas podem interagir com agentes quimioterápicos ou alterar a resposta imune.Ao longo deste texto, discutiremos aspectos fundamentais da avaliação pré-operatória em oncologia, a influência da doença e dos tratamentos na farmacocinética anestésica, bem como estratégias seguras de anestesia—seja geral, regional ou combinada. Também abordaremos possíveis cuidados especiais em procedimentos odontológicos para pacientes com neoplasias de cabeça e pescoço ou sob regimes terapêuticos intensivos. Nosso intuito é oferecer um panorama das melhores práticas em Anestesia e Câncer, promovendo qualidade de vida e redução de complicações no perioperatório.Fisiopatologia do Câncer e Repercussões Sistêmicas
O câncer surge de mutações genéticas que conferem às células a capacidade de proliferar sem controle, escapar de mecanismos de reparo e invadir tecidos vizinhos. Nessa progressão, forma-se um microambiente tumoral que secreta citocinas e fatores de crescimento, modificando respostas imunes e induzindo angiogênese. O paciente oncológico pode experimentar perda de peso (caquexia), anemia, alterações no metabolismo de proteínas e gorduras, além de quadros de hipercatabolismo. Em termos sistêmicos, há maior risco de tromboses, infecções e disfunções orgânicas diversas.Quando pensamos em Anestesia e Câncer, cabe refletir que cada sistema pode estar comprometido. A anemia e a hipoalbuminemia, por exemplo, alteram a distribuição e o metabolismo de fármacos, exigindo ajuste de doses. O comprometimento renal ou hepático pela disseminação tumoral ou pelas toxicidades da quimioterapia interfere na excreção de anestésicos e sedativos. Além disso, a imunossupressão pode elevar a suscetibilidade a infecções perioperatórias, demandando ambientes assépticos rigorosos e profilaxias adequadas.A inflamação crônica associada ao câncer também influencia a cicatrização e o estado geral do paciente, frequentemente mais cansado e intolerante a agressões cirúrgicas longas. Por outro lado, é fundamental considerar a possibilidade de metástases ósseas que fragilizam estruturas, aumentando o risco de fraturas durante posicionamentos cirúrgicos. Portanto, compreender a fisiopatologia oncológica e suas implicações sistêmicas viabiliza um planejamento anestésico e de cuidados intraoperatórios que previnam deterioração orgânica e complicações adicionais.Avaliação Pré-Anestésica e Otimização do Paciente Oncológico
Na consulta pré-anestésica, o anestesiologista investiga o tipo de câncer, seu estágio, tratamentos anteriores (quimioterapia, radioterapia, imunoterapia) e possíveis efeitos colaterais permanentes, como cardiotoxicidade ou nefrotoxicidade. A análise do hemograma verifica se há anemia ou leucopenia significativas, enquanto exames de função hepática e renal indicam eventuais reduções na depuração de fármacos. A coleta de dados acerca do estado nutricional e do índice de massa corporal também orienta a conduta, pois pacientes desnutridos ou caquéticos apresentam tolerância menor a grandes variações hemodinâmicas.Outro ponto essencial na abordagem de Anestesia e Câncer é a estratificação de risco cardíaco e pulmonar. Alguns quimioterápicos, como as antraciclinas, implicam risco de cardiomiopatia, enquanto tumores no pulmão ou mediastino podem prejudicar a mecânica ventilatória. Se houver suspeita de metástases ósseas, particularmente na coluna vertebral, a equipe planeja posicionamentos que não gerem sobrecargas perigosas. Em casos de tumores de cabeça e pescoço, a via aérea pode estar distorcida, exigindo métodos alternativos de intubação (fibroscopia, videolaringoscópio).A otimização pré-operatória inclui corrigir anemia, equilibrar eletrólitos e hidratar o paciente de forma moderada, sempre respeitando limites de função cardíaca ou renal. Em cenários que demandem transfusão sanguínea, avalia-se cuidadosamente risco e benefício, já que produtos hemoterápicos também podem afetar a imunidade. Concluída a avaliação, discute-se com o cirurgião a logística do procedimento, garantindo que o tempo cirúrgico seja apropriado às condições do paciente oncológico e que haja leito de terapia intensiva se necessário.Interações Farmacológicas e Agentes Oncológicos
O arsenal terapêutico para o câncer inclui quimioterápicos citotóxicos, drogas-alvo (inibidores de tirosina-quinase, anticorpos monoclonais) e agentes imunomoduladores. Muitos desses medicamentos podem acarretar toxicidades específicas, como disfunção hepática ou renal, mielossupressão, cardiotoxicidade ou neurotoxicidade. Quando combinamos Anestesia e Câncer, é fundamental conhecer a data da última sessão de quimioterapia e os efeitos residuais que influenciam a farmacocinética anestésica. Por exemplo, se o doente estiver neutropênico, reforça-se a prevenção de infecções; se trombocitopênico, avalia-se o risco de sangramento em bloqueios regionais.Além disso, a equipe se atenta a fármacos antieméticos usados no manejo dos efeitos adversos oncológicos — como ondansetrona, dexametasona e NK1 antagonistas. Algumas medicações podem potencializar ou atenuar a ação de anestésicos, alterando o limiar para náuseas e vômitos no pós-operatório. A analgesia, por sua vez, pode requerer opioides em doses reduzidas ou maiores, a depender do uso crônico de analgésicos potentes para dores tumorais.Quando há terapia alvo que interfira em caminhos de cicatrização ou angiogênese, como bevacizumabe (anti-VEGF), planeja-se a cirurgia de forma a respeitar intervalos mínimos entre a administração do fármaco e o ato operatório, reduzindo complicações hemostáticas e de cicatrização. Assim, mapear essas interações é essencial para minimizar incidentes e garantir analgesia e estabilidade no transoperatório.Seleção de Técnica Anestésica: Geral, Regional ou Mista
A definição da técnica anestésica depende do tipo de cirurgia oncológica e do estado clínico do paciente. Em operações abdominais extensas, a anestesia geral frequentemente se mostra preferencial, pois facilita o controle das vias aéreas e oferece condições seguras para manobras que podem ser demoradas. No entanto, a associação com analgesia regional — por exemplo, peridural torácica ou bloqueio de parede abdominal (TAP block) — reduz a quantidade de opioides e melhora a dinâmica respiratória no pós-operatório, fator crucial em indivíduos debilitados.Em cirurgias de menor porte ou em pacientes estáveis, bloqueios regionais isolados podem ser considerados. Contudo, a ocorrência de coagulopatias ou trombocitopenia, relativamente comuns após quimioterapia, limita o uso seguro de raquianestesia ou peridural. Nesse contexto, a sedação monitorada pode ser suficiente para procedimentos superficiais. Vale lembrar que certos tumores, sobretudo os localizados no dorso ou com infiltração espinhal, podem contraindicar punções neuraxiais por risco de invasão ou compressão medular.A TIVA (Total Intravenous Anesthesia) empregando propofol e remifentanil tem ganhado popularidade em cirurgias oncológicas por oferecer estabilidade hemodinâmica e menor risco de poluição ambiental. Em algumas hipóteses, sugere-se que anestésicos inalatórios podem impactar minimamente a imunidade antitumoral, mas os dados são inconclusivos. O fundamental é assegurar analgesia eficaz e controle hemodinâmico estrito, independentemente do método eleito. Dessa forma, Anestesia e Câncer pressupõem versatilidade e personalização, levando em conta risco-benefício para cada paciente.Procedimentos Odontológicos e Manejo Oncológico
No cenário odontológico, muitos pacientes com câncer de cabeça e pescoço, ou em tratamento quimioterápico, enfrentam mucosite, risco de infecção e dor crônica. Nesses casos, Anestesia e Câncer intersectam-se quando é preciso sedar para extrações dentárias, biópsias ou cuidados periodontais complexos. A intensidade da sedação se ajusta ao grau de cooperação do paciente e à complexidade do procedimento. A anestesia local deve ser cautelosa caso haja trombocitopenia ou maior predisposição a sangramentos.Em neoplasias que afetam a via aérea superior, é comum haver deformidades anatômicas ou limitação de abertura bucal. Portanto, o profissional avalia métodos alternativos de acesso à via aérea (fibroscopia flexível, por exemplo) se houver indicação de anestesia geral. Em contrapartida, quando a intervenção é menor e o paciente se encontra clinicamente estável, a sedação leve ou moderada aliada a anestesia local costuma bastar, com monitorização adequada de oxigênio e pressão arterial.A prevenção de infecções orais é fundamental, pois germes podem atuar como foco de septicemia em indivíduos imunocomprometidos. A antibioticoprofilaxia segue protocolos específicos, considerando a neutropenia ou a mucosite severa. Ao final do procedimento, manter o paciente sentado por alguns minutos evita hipotensão ortostática. Prescrever analgésicos compatíveis com o perfil hepático ou renal do paciente oncológico reduz a dor sem agravar eventuais toxicidades preexistentes.Monitorização Intraoperatória e Cuidados Intensivos
Nas cirurgias oncológicas de grande porte, como ressecções abdominais extensas ou torácicas, a monitorização invasiva assume papel crucial. O cateter arterial permite aferição contínua da pressão arterial, enquanto o acesso venoso central (ou, em casos de maior complexidade, um cateter de artéria pulmonar) avalia a volemia e a função cardíaca de modo mais detalhado. Em pacientes desnutridos ou anêmicos, a perda sanguínea pode ser mal tolerada, demandando reposição cautelosa de hemocomponentes. Ao mesmo tempo, a presença de coagulopatias induzidas por tumores ou pela quimioterapia requer um olhar atento para evitar sangramentos difusos.Para prevenir hipotermia, são usados aparelhos de aquecimento convectivo e fluidos aquecidos, pois a hipotermia prejudica a coagulação, intensifica a vasoconstrição e pode retardar a metabolização de anestésicos. O uso de monitores de profundidade anestésica (p. ex., BIS) ajuda a evitar doses excessivas de fármacos sedativos, reduzindo o tempo de recuperação. Já a ultrassonografia intraoperatória, seja abdominal ou torácica, pode identificar metástases não detectadas previamente ou confirmar margens cirúrgicas livres de tumor.Além disso, a analgesia balanceada, associando opioides, anti-inflamatórios e bloqueios regionais (quando indicados), controla o estresse adrenérgico, amenizando flutuações hemodinâmicas que poderiam comprometer órgãos frágeis. A comunicação constante entre anestesiologista e cirurgião permite antecipar etapas de maior agressão cirúrgica, adequando níveis de anestesia e analgesia em tempo real. Em suma, um manejo integrado no intraoperatório assegura a estabilidade do paciente oncológico durante procedimentos de alta complexidade.Exemplos de Casos Clínicos
Recordo um paciente de 55 anos, com adenocarcinoma de cólon, submetido a hemicolectomia direita. Ele apresentava anemia moderada, mas sem metástases conhecidas. Optamos por anestesia geral balanceada com indução de etomidato, manutenção via isoflurano em baixas concentrações e analgesia epidural torácica para conforto pós-operatório. Monitoramos a pressão arterial invasiva e controlamos a volemia com soluções balanceadas, evitando sobrecarga. O procedimento durou 4 horas, sem instabilidades importantes, e o paciente acordou com boa analgesia, favorecendo recuperação respiratória rápida.Outro cenário envolveu uma paciente com carcinoma de mama localmente avançado, em quimioterapia. Apresentava leucopenia e fadiga, mas precisava de mastectomia radical. Para minimizar a exposição sistêmica a opioides e possíveis efeitos imunodepressores, recorrermos a anestesia geral associada a bloqueio do plano do músculo peitoral (PECS block), garantindo analgesia local prolongada. A monitorização foi simples (aferição não invasiva de pressão arterial e ECG contínuo), pois ela se encontrava clinicamente estável. A paciente evoluiu bem, com pouca dor e retomada alimentar precoce. Tais exemplos ilustram o valor da analgesia regional e do cuidado com volemia em cirurgias oncológicas, reforçando que Anestesia e Câncer podem ser conduzidas de modo efetivo e seguro ao respeitar as particularidades de cada caso.Pós-Operatório e Suporte Continuado
O período pós-operatório do paciente oncológico é marcado pelo risco de infecções, desequilíbrio nutricional e dor persistente, especialmente em cirurgias de grande porte ou sob quimioterapia. A analgesia adequada, aliada a fisioterapia e mobilização precoce, reduz complicações pulmonares e tromboembólicas. Se houve manipulação abdominal extensa, vigia-se sinais de fístulas ou deiscências. Em alguns casos, o controle de náuseas e vômitos é intensificado por meio de antieméticos potentes, pois o histórico quimioterápico agrava a sensibilidade do centro do vômito.Nos casos em que se empregou anestesia regional com cateter peridural ou bloqueios contínuos, a avaliação da função motora e da sensibilidade deve ser rotineira, observando possíveis hematomas ou sinais de compressão nervosa, ainda mais em pacientes imunodeprimidos com risco de infecção local. Em cirurgias com risco elevado de ressangramento, a monitorização laboratorial (hemoglobina, hematócrito, coagulograma) determina se há necessidade de transfusões adicionais. Mantêm-se atentos a distúrbios eletrolíticos, pois a desidratação ou hipervolemia pode sobrecarregar o coração e os rins.Em paralelo, o controle oncológico prossegue, muitas vezes com reintrodução de quimioterapia ou radioterapia em período oportuno. O anestesiologista, ao receber retorno clínico sobre a evolução do paciente, contribui para eventuais ajustes no manejo da dor crônica, comum em muitos tipos de câncer. Assim, a fase pós-operatória demanda uma transição suave para cuidados multidisciplinares, envolvendo oncologistas, cirurgiões, enfermeiros, fisioterapeutas e psicólogos, garantindo suporte integral a essa população fragilizada.Conclusões e Perspectivas Futuras
A convergência entre Anestesia e Câncer exemplifica a complexidade do cuidado de pacientes que, além das alterações fisiológicas inerentes à neoplasia, sofrem os impactos de tratamentos agressivos e, por vezes, imunossupressores. O anestesiologista tem a missão de oferecer analgesia e estabilidade hemodinâmica, respeitando limitações orgânicas e prevenindo complicações infecciosas, hemorrágicas ou metabólicas. A adoção de anestesias combinadas, com redução de opioides e uso de bloqueios periféricos ou neuraxiais, desponta como tendência para melhorar o conforto e a recuperação, embora cada caso exija análise individual.O futuro reserva esperanças de terapias oncológicas mais específicas e menos tóxicas, o que pode atenuar as disfunções orgânicas e simplificar a gestão anestésica. A pesquisa sobre efeitos imunomoduladores dos anestésicos no contexto do câncer também se mostra promissora, buscando elucidar se certos fármacos poderiam interferir positivamente ou negativamente na progressão tumoral. Entretanto, enquanto o panorama não se define, a prática diária requer protocolos bem estruturados, monitorização invasiva quando pertinente e trabalho interdisciplinar.Avaliação pré-anestésica
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